Tuesday, November 1, 2011

Gay Talese: “Se escrever com estilo posso dizer a verdade”


Entrevista de Paulo Moura


Os livros de Gay Talese nunca acabam. Como as personagens são reais, as suas vidas continuam, e ele segue-as, muito depois de o livro ter sido publicado. Décadas depois, escreve outro livro sobre elas, que nunca deixam de colaborar. O segredo para conseguir isto? A beleza da escrita. “Se escrever com estilo as pessoas aceitam”, explica Talese. Uma conversa telefónica com um dos mestres da narrativa americana de não-ficção
“Honra o teu Pai”, publicado nos EUA em 1971, é o primeiro livro do autor editado em Portugal (em 2009, pela Presença). A continuação, que começa onde este termina, foi lançada há uma semana nos EUA. O livro narra a história verdadeira de uma família da máfia nova-iorquina, os Bonanno. Durante sete anos, Gay Talese investigou a vida de Joe Bonanno, a mulher, Fay, o filho, Bill, a nora, Rosalie... Tudo começou quando, um dia, viu Bill Bonanno, um jovem da sua idade, a conversar com o seu advogado no intervalo de um julgamento, em Manhattan. Como será estar na pele dele?, pensou. E dirigiu-se a Bill.
P. Escreveu este livro porque tinha curiosidade de saber como é ser-se um jovem da mafia?
R. Sim, essa é a pergunta a que tento responder em todo o livro: como é estar na pele deles? O que se sente? Em que são eles diferentes de mim? Como é o seu mundo? Quais são as suas ambições? Qual é a tragédia das suas vidas?
P. O ponto de partida é a curiosidade.
R. Sim, como em toda a minha obra.
P. Na descrição que faz de Bill Bonanno, no livro, diz que ele é como um jornalista, porque vive a sua própria vida como se, ao mesmo tempo, estivesse fora dela. É essa a principal qualidade de um jornalista?
R. Tem de ter uma visão dupla. Como um actor desempenhando um papel. Pode identificar-se totalmente com Hamlet, mas, simultaneamente, tem de ter a consciência de que está em palco, e conseguir ver-se a si próprio, do ponto de vista da audiência.
P. Como convenceu Bill Bonanno a cooperar neste trabalho?
R. Ele sentiu que poderia morrer a qualquer momento, com uma bala, e que toda a sua vida seria definida por um departamento da Polícia. Ou seja: a sua vida seria descrita e interpretada por detectives e oficiais de Justiça, gente que nunca a compreendeu. E Bill acreditou que eu tentaria um entendimento diferente. E que, se morresse subitamente, haveria alguma compreensão histórica sobre a forma como viveu.
P. Mas porque confiou ele em si?
R. Confiou e eu nunca traí a sua confiança.
P. Ele e a família mafiosa gostaram do livro, quando foi publicado?
R. Muita gente não gostou. O pai, Joe Bonanno, não gostou. Mas passou algum tempo e todos aprenderam a respeitar o que eu tinha feito. Quando um livro sai, as pessoas dizem que é bom, ou que é mau. Mas, com o tempo, e com perspectiva, o livro ganha uma vida própria, que está acima desse julgamento sumário.
P. As próprias personagens do livro aprendem a respeitar o que lá está escrito?
R. Sim, e é por isso que continuo a contactar com elas depois de o livro estar terminado e publicado. Foi o que aconteceu com Bill Bonanno, 10, 20, 30 anos depois. Até ele morrer, em 2007. E este ano escrevi sobre tudo o que aconteceu desde que o livro saiu, em 1971.
P. É a continuação da história?
R. Sim, é um ‘paperback’, saiu esta semana. Faço quase sempre isso. Há pouco tempo, publiquei também uma nova versão de ‘Thy neighbor’s Wife’, na Harper Collins, com dois novos capítulos.
P. Escreve o que acontece depois de o livro ser publicado? Incluindo a própria publicação do livro e as reacções a ele? O livro faz parte da história?
R. Deixe-me explicar como eu trabalho: levo anos para conhecer as pessoas. Em média, demoro dez anos a escrever um livro. E quando acabo continuo a falar com aquelas pessoas. Muitos jornalistas terminam uma história e nunca mais na vida falam com aquelas fontes.
P. Porque têm de fazer outras coisas.
R. Claro. Num dia estão com uma história, no outro dia com outra, etc. E muitos escritores de livros comportam-se da mesma maneira. Quer escrevam sobre uma guerra, a vida de um político, de um cientista, de uma actriz de cinema. Acabam o livro e nunca mais falam com aquele cientista, aquele artista. Eu não sou assim. Mantenho-me em contacto com toda a gente sobre quem escrevo.
P. A certa altura, não começa a ser muita gente?
R. Tenho 70 anos. Escrevo há 50. E enquanto as pessoas estão vivas, continuo a falar com elas. Mesmo que sejam histórias dos anos 60, 70 ou 80.
P. Porquê?
R. Porque a vida dessas pessoas continua, muitas vezes acontecem coisas interessantes, e eu escrevo mais livros sobre elas. Continuo a segui-las, até morrerem. Vou dar-lhe um exemplo: o primeiro livro que escrevi chamava-se ‘The Bridge’. Era sobre um grupo de homens que construiu uma enorme ponte entre dois bairros de Nova Iorque, Brooklin e Staten Island - a Verazanno-Narrow Bridge. A construção decorreu entre 1961 e 1963. A ponte foi aberta ao tráfego em 1965. Bom, 30 anos depois, fui ver o que aconteceu com aquelas pessoas, e elas contaram-me uma história assombrosa, que eu publiquei, numa nova versão do livro, há dois anos.
P. Ainda tinha algo a contar sobre a ponte?
R. Sim. Era uma das maiores pontes suspensas do mundo e eles estavam muito orgulhosos, porque a contrução era formidável. Todos eles eram especialistas na edificação em altitude. Trabalhavam no céu.  Então, depois da ponte, arranjaram emprego na obra do World Trade Center. Durante 5 anos,  construiram as duas torres gémeas. Mas muito infelizes, porque, segundo o que me contaram, o projecto de engenharia era muito frágil. Os materiais eram baratos, o aço era fino, não como o que tinham usado na ponte. Não havia reforços interiores entre as inúmeras janelas. Todo o design dos edifícios tinha por único objectivo o aproveitamento máximo do espaço, para que fosse possível arrendar cada centímetro quadrado.
P. Eles contaram-lhe isso durante a construção?
R. Depois. Disseram que aquilo era como uma gaiola de pássaros. Não obedeceu aos mesmos critérios da Verazanno Bridge, ou da Brooklin Bridge, ou do Empire State Building, que foram construidos como fortalezas, ou catedrais, que nenhum terramoto conseguiria destruir. Quando os terroristas atacaram as torres gémeas, em 2001, os construtores estavam tristes, mas não surpreendidos. Sabiam que aquilo era como um brinquedo. Se os aviões tivessem chocado contra o Empire State Buiding, teriam caído esmagados, como mosquitos.
P. E publicou essa história.
R. Sim. É por isso que vale a pena seguir as pessoas. Permitiu-me, 40 anos mais tarde, escrever, sobre o WTC, uma história diferente de todas. Com ‘Honra o teu Pai’ aconteceu o mesmo. O livro termina com Bill Bonano a ir para cadeia. Pois eu fui visitá-lo muitas vezes durante os 4 anos em que esteve preso. Quando saiu, em 1975, continuei a encontrar-me com ele. Quando o livro saiu, os filhos dele tinham 4, 5, 7 anos. Depois, tinham 16, 17, 19, depois 25, 26, 29, e eu escrevi o que lhes aconteceu. E quando este livro saiu, esta semana, essas crianças já têm 46, 47, 49 anos, o Bill Bonano morreu, fui ao seu funeral...
P. É interessante que eles tenham continuado a colaborar consigo, toda a vida. Nenhum ficou zangado com o que escreveu... Eles vão lendo o seu trabalho?
R. Não. Nunca lhes mostro nada. Mas sou honesto no que escrevo. E muito sensível em relação a quem escrevo, porque os conheço. Conheço a minha gente muito bem.
P. Mas é normal que as pessoas não gostem, quando se escreve algo demasiado verdadeiro sobre elas.
R. Sabe qual é o segredo? É que se escreva de forma bela. Se escrever muito bem, com complexidade, subtileza e estilo, posso dizer a verdade, que as pessoas vão aceitar.
P. Mesmo que sejam apreciações negativas sobre elas?
R. Se a escrita for excelente, as pessoas apreciam. Tudo o que se fizer de belo terá sempre audiência.
P. Mesmo que não concordem, respeitam.
R. É como o retrato feito por um pintor. Picasso, por exemplo: um rosto pode ter três olhos, mas se for feito com arte, com cuidado, com poesia, ninguém se vai zangar. Em 50 anos de escrita, nunca ninguém me disse que não voltaria a falar comigo por causa do que eu escrevi. Eu humanizo as histórias, sem as distorcer. Conto a verdade, mas dou a entender que há muitas verdades. Isto não é um trabalho de detective. Na verdade, não é um trabalho de jornalista. É sobre factos, e os factos têm de estar correctos. Mas não tem mais nada em comum com o jornalismo. É não-ficção, que pode ser tão profunda e reveladora como a ficção. Mas demora tempo. Eu passo, pelo menos, 4 ou 5 anos com as minhas personagens. Fico a conhecê-las tão bem quanto um romancista conhece as personagens que inventou.
P. Mas tratando-se de personagens reais, não corre o risco de estar a justificar os actos, por exemplo, de uma família mafiosa, como os Bonano?
R. Quando o livro saiu, fui acusado de justificar os crimes, de humanizar monstros. A questão é que eu não estou a humanizá-los: eles são humanos. O que me interessa são as pessoas nos seus próprios termos. Quero ser muito mais do que um observador compadecido. Eu quero realmente compreender, o que nem sempre é bem tolerado. O que acontece é que as minhas histórias vão contra as atitudes estabelecidas. ‘Thy Neighbor’s Wife’ é um livro sobre sexualidade e obscenidade. Vivi num campo nudista e num bordel, porque é assim que trabalho. Investigo na primeira-pessoa. No livro “A Writer’s Life”, conto histórias de sexo inter-racial, ou sobre a feminista que cortou o pénis ao marido...
P. Lorena Bobbit. Porque lhe interessou esse caso?
R. É a história de uma imigrante do Equador, que pensa ter feito um bom casamento, porque arranjou um ‘marine’ americano. Ele era daqueles brancos com pouca cultura, a que chamamos ‘white trash’, que vão para a tropa para terem algum estatuto, uma identidade. Mas perdeu o carro, perdeu tudo, porque não conseguia pagar os empréstimos. Era o desastre total. Então ela cortou-lhe o pénis. Mas, como naquela altura (1994) o movimento feminista era muito influente nos media, ela foi absolvida e considerada uma heroina. Acho isto maravilhosamente irónico.
P. Também conta, nesse livro, que passou um ano na China à procura de uma jogadora de futebol...
R. Queria escrever sobre a China. Então vi aquele jogo de futebol feminino na televisão. E vi aquela mulher, que era a jogadora principal, provocar a derrota do seu país, ao falhar um penálti. Pensei que ela era a representante da nova China, da primeira geração de mulheres que sai à rua, viaja. Ao fracassar, naquela final de campeonato mundial, ela tinha sobre os ombros todo o peso do falhanço da China, que quer vencer, como nova superpotência. Viajei para A China e passei lá um ano...
P. As críticas desse livro foram muito más.
R. Péssimas. Mas ‘Honra o teu Pai’ também foi mal recebido pela crítica da altura. Todos os meus livros o foram.
P. ‘A Writer’s Life’ é a história dos seus últimos 10 anos. ‘Unto the Sons’, a dos seus antepassados. ‘The Kingdom and the Power’ é sobre o New York Times, o jornal onde trabalhava. ‘Honra o teu Pai’ é sobre a mafia italiana, porque a sua própria família é italiana. Por que razão só escreve autobiografias?
R. Escrevo sobre o que conheço. Sabe o que estou a escrever, nos últimos dez anos? Um livro sobre o meu casamento. Estará pronto em 2011.
P. No jornalismo, a regra é não escrever sobre o que nos é muito próximo...
R. Eu não quero nada com o jornalismo. Não escrevo notícias. As notícias duram um dia. Eu quero escrever algo que se possa ler daqui a 30 anos, com o mesmo interesse. ‘Honra o teu Pai’ foi escrito em 1971. Por alguma razão é agora publicado em Portugal, como se fosse um livro novo.
(Ípsilon, Maio 2009)